A relação de Luiz Gonzaga com o Rio Grande do Norte perpassa inúmeros fatos marcantes para a história musical potiguar e do Rei do Baião. Troca de amizades, favores e experiências incalculáveis ao acervo do cancioneiro nacional. Desde a composição Ovo de codorna, em parceria com o potiguar Severino Ramos, à reascensão de "Seu Lua" ao mercado com a produção de seus discos na década de 1980 pelas mãos do mossoroense Carlos André. Também a relação afetuosa com o músico Paulo Tito, parcerias com Elino Julião. Gravação do clássico de Chico Elion, Ranchinho de Páia. Entre outros laços arrochados com o cenário potiguar. Mas a amizade de um sanfoneiro e confidente talvez mereça o maior registro. Foi a pedido do próprio Gonzaga um show em Natal para ajudá-lo nas finanças. E aquela seria a última apresentação dele em público, meses antes de sua morte.
No pátio da Câmara Municipal após receber o título de Cidadão Natalense, em 1979 (esquerda). No finado Machadão, o rei do baião fez show ao lado de Fagner, na década de 1980 (direita). Fotos: Jaime/DN/D.A Press e Moraes Neto/DN/D.A Press |
"A época tava boa pra Gonzaga. O jornalista Carlos Imperial inventou de divulgar que um dos ex-Beatles tinha gravado Asa branca. Isso deu uma levantada na carreira dele. E fomos os dois para esses shows", lembra Roberto. E sentencia: "Verdade é que Gonzaga, eu, o sanfoneiro em geral, sempre passamos por cima da moda. Enfrentamos o twister, o tcha tcha tcha, a Jovem Guarda, o Tropicalismo, a Lambada. O forró nunca morreu. E Seu Luiz era perseverante, teimoso. Nunca teve essa de período de baixa, não". Passado alguns minutos de conversa, o próprio Roberto se contradiz. E lembra quando, em abril de 1989, a mulher com quem Gonzaga viveu seus últimos anos ligou para o sanfoneiro: "Roberto, é Edelzuíta. Gonzaga pediu para eu ligar pra você. Ele está precisando os amigos agora. Tem data para ele por aí?".
Roberto era dono do Forró do Sanfoneiro. O espaço marcou época em Natal, localizado na Roberto Freire, onde hoje funciona o supermercado Favoritos. A inauguração foi em 1985. À época foi Roberto quem convidou Gonzaga para o show de estreia. "Liguei convidando. Quem atendeu foi o sobrinho, Piloto. Gonzaga tava dormindo. Acordaram e ele atendeu todo animado. Era sempre assim: perguntava logo como a pessoa estava, se a família tava boa de saúde, sobre a política local. Aí eu disse que tinha feito um negócio e queria a presença dele pra começar. Ele disse: 'Vou e faço um acordo bom pra você: eu toco dois dias e você me paga um'. E esse um ainda foi barato". Roberto lembra mais de três mil pessoas em cada dia. Espaço superlotado. Mas após um aperreio inesperado. "Gonzaga chegou mais de três horas atrasado e com uma dor de barriga danada. Quando chegou entrou direto ao banheiro", relembra o amigo.
O último show
A amizade de Roberto do Acordeon com Gonzagão teve início ainda na década de 1960 e prosseguiu fiel até a morte do rei do baião. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação |
O show foi em maio. Luiz Gonzaga se locomovia em cadeira de rodas decorrente de osteoporose. Morreria três meses depois, em 2 de agosto de 1989, vítima de parada cardiorrespiratória no Hospital Santa Joana, na capital pernambucana. O Forró do Sanfoneiro fecharia um ano depois, quando "o dono do terreno cresceu o olho no lugar". Ainda saudoso do lugar, Roberto se conforma com a frase do amigo Gonzaga: "Ele me dizia: 'Roberto, se esses forrós fossem bom pra negócio eu tinha uns quatro ou cinco lá no Rio e São Paulo, porque fui eu quem levou o forró pra lá". Mas fato é que enquanto durou, o Forró do Sanfoneiro foi rentável. O delegado Sérgio Leocádio, que escutava a conversa, confirmou: "A boemia natalense ia pra lá. E Roberto inovou colocando pela primeira vez no banheiro da mulher, cotonete, absorvente e batom".
A ingratidão
Roberto é seco quando critica "aproveitadores" do centenário de Luiz Gonzaga, celebrado este ano. "Tem muita gente se aproveitando disso pra ganhar dinheiro; gente que nuncadeu a mínima pra ele". No enterro narrado como fato épico pelo amigo, Roberto lembra da "ingratidão" de três renomados artistas nacionais sempre apoiados por Gonzagão: Fagner, Elba Ramalho e Gal Costa.
"Foi o maior enterro que este Brasil já viu. Na morte de Tancredo Neves o país parou por quatro dias. No de Gonzaga foram cinco. Nunca houve isso". O sanfoneiro lembra que o corpo foi velado na Assembleia Legislativa do Recife e de lá seguiu para o aeroporto da cidade acompanhado por uma multidão, rumo à cidade do Crato, no Ceará, vizinha a Exu, com mais quatro dias de luto.
"A gente ligava a Rádio e ouvia o locutor conversando com Fagner, que estava em Brasília: 'Fagner reserve um tempinho entre os seus shows e venha dar seu último adeus a Gonzaga'. Nem veio ele, nem Elba nem Gal. Os três tinham gravado com ele não fazia muito tempo. As irmãs de Luiz me disseram que Luiz não tinha feito por elas o que fizera por esses três". E foram lá Alcimar Monteiro, Dominguinhos...
O amigo
Quando a amizade de Roberto e Gonzaga se estreitou em 1976, o filho de Januário pensou em presentear o amigo com uma sanfona novinha. "Todo ano ele ganhava bem três de uma empresa gaúcha porque Gonzaga teve um chamego com a dona. Mas quando ele e viu eu tava com uma sanfona Scandale Super 6, da antiga, que era a melhor. Foi a primeira do Nordeste deste tipo. Aí ele disse: 'Pensei que você tivesse pendurado num fio de cabelo, rapaz. Mas você tá é rico'".
Foram incontáveis as vezes que Gonzaga almoçou ou jantou na casa de Roberto. Quando se apresentava pelas redondezas do Rio Grande do Norte parava por lá. Dormiu só duas vezes. E foi acompanhado cada vez com uma mulher diferente. A primeira vez foi com Edelzuíta. E na segunda, com Helena, com quem foi casado. "Quando ela entrou em casa, ele botou o dedo na boca e fez o sinal de silêncio, pra eu não contar nada de Edelzuíta pra ela".
O romance de 13 anos com Edelzuíta Rabelo foi confidenciado por Gonzaga à imprensa já perto de sua morte, a pedido de Edelzuíta, que queria evitar atritos com a primeira esposa de Gonzagão, Helena das Neves, ainda viva na época. "Pode botar aí no jornal que o charme da minha vida agora é Edelzuíta!", disse o Rei do Baião, que morreu nas mãos dela tempos depois.
O conselheiro
Se Roberto ajudou Gonzagão no fim da vida, o passado também mostra o contrário. À época do "festão" armado para sua volta a Exu, cidade de origem, Gonzagão ligou e convidou Roberto: "Só tou chamando os amigos", ele me disse. Corria o ano de 1983. E na mesma oportunidade foram inaugurados na cidade o campo de aviação e o museu de Exu.
Em outra oportunidade, no famoso restaurante O Laçador, em Boa Viagem, se apresentavam as grandes estrelas da música nacional. "Só não foi Roberto Carlos porque sempre foi cheio de frescura pra ir aos cantos. Mas Gonzaga me recomendou para o dono e findei tocando lá também. Mas antes ele me aconselhou: 'Chegue lá humilde. Mas se não lhe respeitarem dê de importante porque Deus fez a gente sanfoneiro e nosso feijão com arroz a gente traz de qualquer outro lugar'".
Roberto diz que leva este conselho onde quer que vá. Se orgulha em nunca ter se dobrado à nova música, às novas modalidades do forró, ou mesmo de nunca ter tocado um instrumento eletrônico. E mais ainda: de já estar passando a arte da sanfona ao herdeiro, Robertinho do Acordeon.
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