LAGOA DE MONTANHAS

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quarta-feira, 18 de abril de 2012

O TESOURO DEIXADO POR DEIFILO GURGEL

Era lindo ver o Boi (de Reis), me apaixonei na hora quando vi as roupas dos galantes (brincantes) reluzindo ao entardecer", disse certa vez o saudoso Deífilo Gurgel do alpendre de sua casa no Tirol. Com voz fraca e olhar absorto, lembrava de seu primeiro contato com o colorido da Cultura popular: "Depois daquele dia (em 1971), descobri o folclore e comecei a viajar pelo Rio Grande do Norte para registrar tudo o que estava a meu alcance", contou o folclorista, sempre atencioso, à reportagem do VIVER naquela melancólica tarde de julho de 2011.
Alex RégisEntre outras pérolas, livro póstumo de Deífilo Gurgel reúne mais de 300 romances cantados e declamados por vários mestres, como Dona Militana.Entre outras pérolas, livro póstumo de Deífilo Gurgel reúne mais de 300 romances cantados e declamados por vários mestres, como Dona Militana.

Na ocasião, Deífilo apresentava o projeto ao qual dedicou quase 30 anos de sua vida, o livro "Romanceiro Potiguar", que será lançado hoje, às 20h, no Palácio Potengi - Pinacoteca do Estado. O livro de 243 páginas integra a Coleção Cultura Potiguar (Editora Manimbu/Fundação José Augusto), custa R$ 40 e traz ilustrações do artista plástico Iaperi Arapujo  

Pesquisador, professor, escritor e poeta, falecido em fevereiro aos 85 anos, Deífilo circulou pelos rincões do RN entre 1985 e 1995 registrando, como bem disse, tudo o que podia. Sua obra, verdadeiro tesouro que imortaliza um apanhado significativo da sabedoria popular do RN, a mesma que definha por falta de atenção e incentivos públicos, reúne cerca de 300 romances cantados, declamados e versejados por mestres como Dona Militana, de São Gonçalo do Amarante; Pedro Ribeiro, de São Pedro do Potengi; Dona Maria de Aleixo, de Nísia Floresta; Dona Jovina Monteiro; e Dona Maria de Vito, da praia de Caraúbas em Maxaranguape.

"Sei que há gente nova que herdou esse conhecimento dos romances, mas só uma nova viagem para identificar essas pessoas", sugeriu, na época, o folclorista, que, confessou, começou tarde seu trabalho.

ROMANCES IBÉRICOS

O presidente da Comissão Norte-rio-grandense de Folclore, Severino Vicente, discípulo de Deífilo Gurgel, acredita que "Romanceiro Potiguar" é uma das maiores pesquisas no Brasil sobre o gênero. "Acompanhei a revisão do trabalho e posso garantir que se trata de uma das maiores pesquisas já feitas sobre o romanceiro nacional. É, realmente, um trabalho completo!", avalia Vicente.

Os romances ibéricos, catalogados como romances palacianos, religiosos e plebeus, chegaram ao Brasil ainda no tempo da colônia e atravessaram os séculos através da tradição oral - segundo pesquisas, o RN concentra cerca de 80% de tudo o que se conhece no país. O livro ainda traz obras criadas em solo verde amarelo, onde surgiram os romances da pecuária, do cangaço e os burlescos, "cantados nos circos de antigamente". "É de fundamental importância termos contato com essa memória", considerou Severino Vicente. "Acredito que não haverá uma pesquisa tão vasta e abrangente como esta, ainda mais que muitos mestres já faleceram."

DESCOBERTAS

As pesquisas de Deífilo Gurgel para conceber "Romanceiro Potiguar" renderam descobertas ao folclorista. Entre os destaques está "Milagre do Trigo", apresentado por Dona Militana: "Só ela sabia cantar esse romance. Cheguei a conhecer um professor  português, JJ Dias Marques, da Universidade de Algarves, que me disse que já tinha ouvido versões em espanhol", contou Deífilo naquela tarde, na varanda. Outra grande descoberta do folclorista foi o romance "Paulina e Don João", que mescla elementos italianos - uma raridade, pois os temas predominantes são de Portugal e Espanha.

A terceira descoberta destacada por Deífilo foram os registros de vários fragmentos de romances criados por Fabião das Queimadas (1848-1928). Além dessas raridades, o livro traz três inéditos: romances marítimos do Fandango declamados por Seu Atanásio Salustino, pai de Dona Militana.

Memória

JÓIA - por Carlos Gurgel

Meu pai sempre trabalhou no limite. Nunca procurou trilhos, lunetas efêmeras. Ele se doava. Ele se satisfazia ao redor da fala do povo e das suas catedrais. Seu suor era como uma vela incessantemente acesa, que fazia luzir a face de todos aqueles deserdados, de todos aqueles esquecidos, de todos aqueles abandonados tesouros.

Meu pai sempre foi além. Como um anjo, que permanentemente ressuscitava seus sonhos, como cortejo apinhado de magistrais falas e chãos batidos.

O seu néctar, a sua água bendita, a sua rejuvenescedora chama, se espalhou indistintamente entre campos, entre os corações de quem buscou os seus sagrados segredos, como uma nação destemida e excluída.

Meu pai, o tempo todo, lacrimejou junto com eles, numa fronteiriça razão humana. Tudo como um pêndulo poético: doou pão, paciência, perdão.

Meu pai juntou lenha e acendeu a chama da esperança. Dançou a dança da concórdia e da alforria. Tão intensamente, que todo dia quando olho para a lua, vejo sua face, lamparina apaziguadora de desmaios e dilúvios. Tudo como ele sempre quis: passou pela Terra e deixou a mensagem do ser feliz.

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